CORPOS
CORPOS
Sempre
que ouço, ou leio algo referente a violência contra mulher, sinto uma dor
estranha, como se minhas cicatrizes arrepiassem, querendo se abrir, como quem
está sarando uma ferida e come algo que o faz mal. Essa sensação de estranheza
é uma identificação, algo que a empatia faz, ou mesmo a sororidade que nos
antecipa deveria fazer, pois quando uma mulher é violentada, todas as outras também
são.
O
nível desse entendimento pode até variar de uma para outra, mas a bem da
verdade é impossível não compreender todo esse processo que nos une em dor,
pois arrisco dizer que não há uma mulher sequer no mundo, que não tenha pelo
menos uma vez, enfrentado um episódio de violência em toda sua vida. Na minha
vida, não foi diferente.
Desde
muito cedo, aprendemos através dessa estrutura patriarcal, que nossas vidas,
corpos e escolhas, devem corresponder ao que agrada aos homens; e não importa
se nos desagrada, nós só precisamos seguir as regras, seguir o fluxo... Afinal
de contas quem rompe com esses paradigmas, no mínimo é chamada de louca, e pode
pagar caro por isso.
A
semente do machismo que me cerca, e cerca a cada uma de nós, inclusive os
homens, é severa, e desconsidera a logica real da nossa própria existência. O machismo
não perdoa mulheres, nem mesmo as crianças; essas mesmas que cobramos uma
autoridade responsável sobre si, que faz uma menina de pouco mais de 10 anos,
ser considerada uma mulher consciente de suas escolhas, a partir do momento que
ela se envolve sentimentalmente com um homem, seja ele de que idade for. Aos homens,
é lhes dado o direito de nunca amadurecer, a nós mulheres a responsabilidade de
já nascermos amadurecidas.
Eu
tinha 15 anos quando fui assediada por um professor, antes disso, vasculhando
minhas memórias, lembro bem das piadinhas que recebia de homens maduros, quando
ia comprar alguma coisa a mando de meus pais no comércio. Tinha um cara que
fazia questão de segurar minha mão e dizer olhando fixamente em meus olhos: “Quando
você crescer, vou casar-me com você!” - aquilo me deixava em polvorosa. Minha vontade
era de correr dali e nunca mais voltar. Muitas vezes ia chorando para casas com
medo.
Lembro
também de alguns outros episódios, onde eu e algumas meninas da mesma idade,
fugimos de um outro homem, que se exibia com seu membro a mostra na praça da
matriz, como quem expunha um troféu da sua crueldade machista. Outra vez, numa
vigem de ônibus de Fortaleza a minha cidade, aos 17 anos, sentada ao lado de um
outro homem, ele não disfarçava os olhos compridos no meu decote. Me senti tão desconfortável
que mudei de lugar logo que vagou espaço entre as cadeiras.
Essas
e tantas outras importunações, que se fosse relatar todas aqui, escreveria um
livro só de atos violentos contra mim. Mas de todos os atos de violência,
nenhum me fez marcas tão profundas quanto o aborto.
Pois
é, esse é um assunto muito complicado a ser falado, até hoje; antes mesmo de
vir aqui colocar em palavras toda essa dor, eu pensei muito a respeito, porque
é sobre tantas coisas, que não podem ser compreendidas apenas como vida ou
morte, é maior, muito maior.
Aos
19 anos eu engravidei; meu namorado era mais novo, e sua família pertencia a
uma estrutura social bem diferente da minha; ricos, e bem-conceituados
profissionalmente, o pai do meu namorado, não aceitava de maneira alguma que
ele mantivesse seu relacionamento comigo. Médico de renome na cidade, ele então
articulou um plano, que convenceu a minha mãe a me levar ao hospital que
pertencia a família dele, para uma consulta. Chegando lá fui conduzida pela
equipe técnica a sala de parto, onde fui dopada e realizada procedimento de curetagem
uterina (aborto provocado). Ao tornar dos efeitos medicamentosos, percebi que
estava em um quarto de hospital, com um curativo sob o seio esquerdo, e meu
procedimento via SUS, dizia ser uma retirada de nódulo no seio. No momento não
entendi muito bem o que havia acontecido, só estranhei mesmo, quando percebi
que estava usando um absorvente desses bem grossos e minha menstruação havia
chegado.
Voltei
para casa andando sozinha, e lembro bem de ter ouvido uma das enfermeiras me
recomendar repouso e cuidado. Em casa, ainda meio groge dos remédios, fiquei
pensando no que havia acontecido, e com os dias fui me convencendo que essa
teria sido a melhor alternativa no momento.
Alguns
anos depois, aos 22 anos, engravidei novamente, e ao contrário do que se
pensava, ainda estava namorando o mesmo rapaz, e dessa vez o pai dele, não “quis”
usar de meu corpo da mesma maneira, quando soube da gestação ele resolveu me “condenar”
com a gravidez. Disse-me: “Você vai ter essa criança, para aquele cabra saber o
quando vale criar um filho!”.
Eu
tive minha filha, saudável e linda. Um presente divino em minha vida. Mas o que
quero dizer aqui, e sobre as nossas escolhas. Em nenhum dos episódios eu fui
consultada. Depois de muitos e muitos anos, só depois de começar a estudar
sobre direitos humanos e políticas para mulheres, comecei a digerir melhor
essas dores. Aquilo, tinha me consumido por longos dias, o que verberava dentro
de mim era sujo, condenatório, invasivo, doentio. Me sentia a pior das
criaturas. Meus conceitos religiosos arraigados do machismo que nos consumiam,
de todo esse processo de dor, nos colocando em um lugar de mais violência ainda.
Pedi perdão a Deus muitas e muitas vezes. Ter coragem para tocar nesse assunto
me corroía, chorei dias e noites, pensando naquela criança, no que poderia ter
sido, como, quando, era um fardo pesado demais. Uma dor que corrói...
O
que vão pensar de mim? Como vou conseguir viver com esse peso? Em todo tempo a
culpa era minha! Sempre minha, porque é assim que essa estrutura nos faz
pensar.
Agora
diante dessa verbalização mais consciente e menos condenatória, não me coloco mais
na prisão do julgamento, sou mais vítima, mesmo assumindo as minhas responsabilidades...
Somos vítimas!
Não
tem a ver com aborto ou parir, dar ou criar seus filhos; tem a ver com a
autonomia do meu corpo, em nenhuma das opções eu fui sequer solicitada de minhas
escolhas, foi o machismo e o patriarcado que escolheu por mim. (Tudo bem ser
assim, afinal de contas meu corpo não me pertence!) Não... não é esse o ponto! Me
perdoar, foi e é muito complexo, envolve sentimentos dolorosos, anos de condenação
de quem ainda se acha no direito de apontar seu dedo. Não ... eu não permito!
Não mais!
Nem
o aborto, nem o nascimento falam por mim, pois até quando optamos pela maternidade
somos condenadas, a criar e educar nossos filhos sozinhas, o mundo nos exige
essa responsabilidade, e passa pano aos abortos sociais exercidos pelos homens diariamente.
Falas
do tipo: Engravida porque quer...Não se
cuida... Ah, estava se oferecendo... Também só vive bêbada!... Olha a roupa que veste!?
... Está dando golpe da barriga... Interesseira... Tudo isso diz de uma
estrutura que só nos condena.
A
vida das mulheres precisa de mais atenção e cuidado, nossa sexualidade, nossas
escolhas, nossa autonomia, nossos corpos, reconhecimento e respeito. É sobre
direitos, é sobre nós, por nós, pelas nossas vidas, sem dor, sem medo, sem
culpa, para que possamos ter liberdade de ser mulher, mãe ou não, mas felizes em
nossas escolhas.
Izângela
Feitosa
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