TIGRESA

 TIGRESA

           

Quando eu tinha 16 anos, fui morar em Fortaleza, na casa do meu tio. Eu queria estudar, desvendar um mundo novo, me aprofundar nas opções que até então, não eram possíveis na minha cidade. Há época, minha cidade era bem pequena (ainda é, na verdade), e para cursar o ensino médio de qualidade precisaríamos buscar outros horizontes externos. Mas esse texto não é sobre isso.

            Na casa do meu tio, eu comecei a conviver mais com as minhas três primas; e elas são até hoje minhas “irmãs” de outros pais. Essa convivência aconteceu num momento em que todas nós estávamos vivenciando as descobertas típicas da adolescência, com algumas ressalvas, porque a adolescência de uma menina educada na cidade grande é bem diferente da de uma que sempre viveu no interior. Havia coisas entre nós, que eu nem fazia ideia da existência, e como sempre fui uma menina muito podada, eu tinha muito medo de decepcionar minha mãe. (Sobre isso falaremos em outro texto, acho importante.) Então eu nunca bebi, nunca fumei e morria de medo de qualquer contato físico por parte de um homem. Sim, eu era virgem com 16 anos!

            As minhas primas me apareciam muito mais velhas, embora entre nós houvesse uma diferença de idade no máximo de quatro anos. O mundo visto pelos olhos delas eram uma espécie de desdobramento do que eu poderia alcanças, mas que agora faz todo sentido. Especialmente a minha prima Cida.

            Vejam vocês como a vida nos levam por um curso, que não se pode fugir. Desde sempre eu gosto de escrever, e mesmo nessa época já fazia meus escritos secretos, e neles havia muita admiração pela “afronta”, que aquela jovem mulher representava.

            Vamos pensar no mundo em 1992, bem diferente das muitas possibilidades que existem hoje. As tecnologias não eram popularizadas e o conhecimento era um campo restrito para poucos.

(Hum...acho que ela não vai gostar de ter feito esse marco histórico. Estamos entregando a nossa maturidade! Mas acho que ela me perdoa. Seguiremos com a história.!)

            Cida, era estudante de Serviço Social na UECE, um curso que até hoje é referência nacional. Ela se dedicava ferozmente a compreender o projeto ético político, quando ele estava ainda nascendo em nosso país, então ela era super ativista, militante, humanitária. Questionava tudo, inclusiva o modo de vida em que privilegiadamente foi educada.

            Não, meu tio não era rico, mas era comum na época, os pais terem como projeto familiar, oferecer aos filhos a melhor educação que pudesse. Era esse o legado que qualquer pai, trabalhador assalariado pensava, em deixar para seus filhos. Antes da educação ser um bem tão mais acessivo, essa era a herança que se deixava aos filhos.

            Voltando a Cida...

            Cida se identificava muito com o feminismo, seus primeiros estudos ainda pertenciam ao início dessa valorosa construção social, fundamental para nossa existência, e eu virei cobaia fácil de seus experimentos. (GRAÇAS A DEUS!!kkkk)

            Ela, me levava para tudo quanto era movimento. Detalhe, muitas vezes eu não fazia ideia do que se tratava. Posso destacar aqui momentos marcantes na minha memória, que fazem parte da mulher que me tornei, ou que estou me tornando.

            Estive com ela, na primeira vigília em defesa dos pacientes com AIDS, contra a discriminação, para o tratamento pelo SUS, na Praça do Ferreira. Também passeei de cara pintada pelo Impeachment de Fernando Collor. Foi com ela que aprendi minimamente sobre democracia, política pública, participação comunitária, a analisar músicas, interpretar falas, a entender sobre a ditadura. Foi ela, quem me apresentou a LULA. Mas acredito que a maior contribuição que ela me deu, foi me compreender como um ser sexual, como mulher.  Pois é... ela me ensinou o que eu nunca havia aprendido em lugar nenhum na minha cidade.

            Lembra que eu disse que era virgem? Então, todas as vezes que ela partilhava comigo sobre assuntos relativos à sexualidade, havia uma mistura de sentimentos em mim, medo e curiosidade.  Ela falava abertamente sobre como se sentia livre para experimentar, viver, aprender, mas com responsabilidade. Falava sobre o corpo, criava consigo um campo de amor-próprio quando ninguém nem falava sobre esse assunto. Não ligava para padrões, e sabia ser essencialmente linda. Dançava ao som de Cazuza sensualizando e se identificava muito com a Tigresa de Caetano.

            Foi com ela que ouvi pela primeira vez a palavra :ORGASMO. Aliás, fui com ela a um seminário sobre orgasmo. Kkkkkk! É claro, que eu nem fazia ideia do que seria essa potência, que hoje é um dos meus maiores objetos de estudo. O prazer feminino na cabeça daquela jovem mulher, era uma certeza, enquanto para a maioria das meninas da nossa idade era uma opção.

            Cida, pode até não saber, mas ela é muito responsável por boa parte de quem me tornei. Embora nós duas tivéssemos se perdido um pouco do percurso de ser essa mulher incrível, que nós sabemos ser agora, por muitas questões que o próprio machismo nos condiciona, é indiscutível como há um propósito, um objetivo, ou um destino.  Acho que se pode chamar assim. Não fugimos da nossa essência, para tudo há um propósito real.

            Bom, ela não se formou em serviço social, optou anos depois pelo direito, e se sente realizada hoje, sendo uma professora de inglês topíssima. Mas eu sim, me formei em serviço social, e me tornei especialista em sexualidade, abraço a causa das militâncias femininas e LGBT, contra preconceitos como missão. Minha formação profissional e política, foi se desenhando ao longo dos anos a partir das construções e desconstruções pessoais, de minha vivência, e como é bom poder agora fazer essa avalição tão especial.

            Eu e Cida, quase não nos encontramos pessoalmente, mas é fato que há em mim um tanto dessa mulher imensa, de qualidades únicas, de um gênio forte, é verdade, mas cheia de amor para dar. Dona de um coração capaz de compreender há muito tempo, o quanto é importante ser empático, humano de verdade. O quanto ser mulher, sem amarras, sem limitações, amando do seu jeito, o tempo que for necessário, quem ela quiser, é o mais importante. Essa TIGRESA de unhas negras e íris cor de mel, ainda tem muito a me ensinar, e eu sou grata por ter aprendido tanto.

 

Izangela Feitosa





Comentários

  1. Coisa linda ..
    retratou muito bem..
    Você escreve bem demais Prima !!
    Ainda lembro você chorando quando a gente te “obrigava” a sair kkkk
    Amo vocês!!
    viva a Cida !!!

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