A DIETA ( O PÃO QUE O DIABO AMASSOU)

 

A DIETA ( O PÃO QUE O DIABO AMASSOU)

 

            Finalmente chegou a minha vez, depois de horas aguardando a atendente me chamou: “Pode entrar, a doutora está esperando!”

            Fingindo paciência, mas já exausta daquela espera, me dirigi ao consultório médico e antes mesmo de qualquer formalidade fui perguntada, o que fazes aqui? Não fosse quase obvio, eu respondi.

            Bom dia! (Eram quase 13:00, minha condição de não alimentação, confundia o dividir do dia em prática saudação, mas respondi).

-Dra. Esses últimos dias tenho me sentido estranha, cansada, meus olhos e cabeça doem, e vez por outra, me sinto enjoada. Desanimada...sabe.

-Já procurou um oftalmologista?

-Na verdade não. Optei por começar por aqui, afinal a UBS, é a porta de entrada para todos os outros serviços de saúde, e como faz um tempo que não realizo exames, acredito que por aqui seria o ideal.

-Ah, tá!

Era inevitável o desconforto da jovem médica diante da minha necessidade. Mesmo assim ela prosseguiu.

-Vou medir a sua pressão. Hummm, está um pouco alta senhora. Já faz uso de medicação?

-Sim, desde que tive Covid. De lá pra cá eu a losartana nos tornamos boas amigas.

-E como anda a dieta? Notei que está com sobrepeso. Procurou uma avaliação nutricional? Certamente está com as taxas alteradas de colesterol e triglicerídeos, o que pode estar deixando-a enjoada. Não está gravida não, né?

-Deus me livre doutora! Bom, não vou mentir. Detesto atividade física, quanto a alimentação, não sou tão relapsa, escolho bem o que como, modero no sal, mas não me excluo do que tenho vontade. De vez em quando tomo uma cervejinha, até porque viver no Brasil nos últimos tempos tem sido uma verdadeira prova de resistência, a gente precisa desopilar, e pirar de vez em quando para não pirar de vez. Você não acha?

Ela sussurrou: -É verdade! Num tom de quem não sabe muito bem do que estou falando, sabe? Aí eu completei:

-Você tem quantos anos? Me parece bem jovem? Se formou recentemente?

-Sim. Me formei há pouco mais de dois anos, e esse é o meu primeiro emprego.

-Se formou em faculdade pública ou particular?

-Particular. Tive que fazer um FIES para concluir, porque do meio para o fim as coisas foram ficando muito complicadas. Aliás tenho 27anos. A senhora é formada?

-Sou Assistente Social, há 10 anos, e lhe digo que as dificuldades que você acredita ter enfrentado estão bem longe da realidade daqueles que eu acompanho todos os dias. Você já percebeu que o público do seu posto de saúde tem trazido muitas demandas sociais?

Ela me olhou mais estranho ainda, e perguntou: O que são demandas sociais?

Foi aí que a ficha caiu. Não estamos no mesmo barco. Há uma bolha separatista de classe e oportunidades que foi engrossando nos últimos quatro anos. É fácil perceber que quando olhamos apenas para as nossas necessidades não conseguimos olhar com clareza o que há de fora. O mundo não é mais o mesmo, e as pessoas assumiram o capitalismo como um estilo de vida muito perverso, cada um só pensa no seu bem-estar.

-Dra. Quantas pessoas, mulheres, você atendeu aqui nos últimos tempos com fragilidades emocionais?  Ansiosas, depressivas, carentes muito mais de atenção, do que de remédios. Quantas mães, medicadas com dores de fundos emocionais? Jovens gestantes, idosos, com medo? Isso é demanda social. Alguma vez questionou sobre a vida pessoal deles? As pessoas estão morrendo de doenças causadas pela fome, pelas preocupações, pelas limitações, pelo desemprego. Adoecendo porque não sabem mais o que fazer para proverem suas necessidades básicas. Meninas que não vão a escola por não terem absorventes. Mães que deixam de comer, para dar aos filhos.

Veja bem, sou uma profissional com residência em saúde, sem modéstia tenho um dos melhores currículos da minha área na região, e, no entanto, estou tralhando como bolsista num programa do Estado, ganhando pouco mais de um salário-mínimo, porque passei mais de um ano sem trabalho, e agarrei o que pude, para sobreviver. Não estou reclamando da vida. Não é isso! Amo o que faço e sempre dou o meu melhor em tudo. Mas eu também tenho uma filha. Ela também precisa de mim, e é obvio que mesmo diante das minhas predisposições genéticas para hipertensão toda essa montanha-russa que enfrentamos juntas nos adoeceu.

Sou uma mulher otimista, acredito em dias melhores, luto por dias assim desde jovem. Eu vi a Constituição Cidadã se tornar nossa lei maior; o SUS se tornar -se política universal, para todos os brasileiros. Assisti a Previdência se tornar justa; o trabalhador ter direitos. Eu fui as ruas gritar Fora COLLOR, de cara pintada e com o coração cheio de esperança. Vi os movimentos sociais nascerem no país, e vi também a elite brasileira se incomodar com a oportunidade oferecida aos pobres. Vi os pretos e os LGBTs saírem da invisibilidade (minimamente). Senti na pele o valor do nosso dinheiro, e assim pude comer o que tinha vontade. Assisti um operário, nordestino, exibi com orgulho a faixa verde amarela, e me senti representada ali em suas lagrimas. Que dia lindo!

Vi mulheres ocuparem espaços de poder, crescendo em conjunto. Nossas leis em benefício dos que mais precisam. Uma mulher assumir o comando do país. Vi o que eu posso chamar de renascer da esperança, e embora nada possa ser perfeito, foram anos bons, onde a nossa voz era ouvida, e o pobre, como eu, pode ter um pouco de dignidade e qualidade de vida, inclusive proporcionando aos seus filhos formações como a da jovem doutora.

Mas tudo isso agora parece uma ilusão de contos de História. Faço críticas em relação a esse passado recente que vivi, porque nem sou tão velha assim, como pode ver. Mas vivemos anos tão bons que deixamos de reforçar como dizia tão bem Belchior: “O novo sempre vem”. E nem sempre o novo veste roupas novas. O retrocesso é visível, e descontruir é muito mais avassalador do que qualquer construção, e aqui estamos.

A vertigem de nossa democracia, também se tornou crônica, e agora agonizamos as possibilidades de mudança diante de uma polarização política partidária enquanto as mazelas comuns a população se espalha. Discursos de ódio, palavras proferidas em nome de Deus. De que Deus estamos falando?  Estamos todos doentes!

Nem é preciso ser muito inteligente, basta ter um pouco de senso crítico, e se percebe que o discurso de quem não se sente representado, vai manter no poder o pior cenário que já vivemos de todos os tempos. Isso pra mim não é inteligente.

Passamos da hora de levarmos essa mensagem de clareza a juventude, sobre o que já tivemos que enfrentar para chegarmos até aqui, ou há tempos atrás. Talvez hoje não seja eu, quem precise tanto de atenção médica. Talvez a falta de comida no prato, o exagero nas cobranças das taxas de energia, água e gás; o exorbitante preço da gasolina, necessitem mais de remédio, porque se estávamos morrendo por negligência com a pandemia, continuamos a morrer sem ela. Isso é fato! E nossa guerra, não é a guerra do outro lado do mundo, como querem nos convencer. O plano sempre foi matar!

Quanto a dieta doutora, e as minhas condições de saúde, eu lhe afirmo, faça as contas: “É difícil fazer dieta, comendo o pão que o diabo amassou!”

 

            Izângela Feitosa












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