RENASCIMENTO
Renascimento.
É Natal, no ano de 2021. Um
dos anos mais difíceis vividos por todos nós. Um ano que tivemos que suportar
tantas perdas, ressignificar saudades, reaprender a partilhar, olhar o outro
com compaixão. Ouvimos tanto falar em acolhimento, partilha, e especialmente
nessa época, nos enchemos de AMOR AO PRÓXIMO. Mas será mesmo que tais
sentimentos encontram terreno fértil em nós? Será que toda essa preocupação com
a vida, não é apenas um discurso bonito de palavras cheias para agradar a quem
ler?
O Natal é naturalmente esse
ponto de reflexão que a grande maioria das pessoas se faz. Mas será que vivemos
o que pregamos? Será que entendemos o significa realmente o renascimento de
Cristo todos os anos?
Esse ano saímos para jantar,
nós quatro, na praça da nossa cidade, mamãe, minhas irmãs e eu, para
celebrarmos o nosso Natal. Essa energia que nos une em amor maior,
compartilhada de todas as nossas vivências, histórias que nos fazem únicas e
iguais. Sangue do mesmo sangue. Cada uma de nós já viveu sua parcela de vida e
se entende nas próprias superações, sentidas de forma diferente.
De repente, no meio da praça
um homem que visivelmente está alterado, dispara correndo em direção a sua ex-esposa,
deixando o carro parado no meio da rua, gerando um leve engarrafamento. Pessoas revidam a essa atitude buzinando para
que saia. Mas sua ânsia em tomar de posse a sua ex é a motivação daquela
atitude que inconsequente poderia ter causado um acidente.
Mas ele não liga para isso! O desejo de arrastá-la pelo braço, forçando-a ir
com ele, é o impulso gerador da imprudência. Aquela mulher que ele jurou amar,
agora é um objeto condicionado ao seu domínio.
Ela revida; pede para que ele
a deixe em paz, retira seu braço da mão pesada que tenta convencê-la a aceitar,
enquanto ele insiste em querer arrastá-la até o carro.
Os olhos atentos do filho do
casal, possuem uma mistura de medo, repulsa, vontade de proteger sua mãe, e a
certeza de que aquilo não vai acabar bem. O menino já viu aquele filme tantas
vezes, que não sabe, mas distinguir o que é amor, está tudo confuso em sua
mente.
O homem insisti em levar sua
vítima mais uma vez ao cárcere. Ela é orientada pela irmã a não ir, quase em
desespero, ela pede! Ela não quer ir! Sua voz trêmula, o corpo numa descarga de
adrenalina que mistura medo, vergonha, humilhação e vontade de gritar por
socorro, mas ninguém...NINGUÉM a socorre!
Todos assistem aquela cena,
como se num teatro a céu aberto estivessem. Sentados, estáticos, fazendo
julgamentos de valores, e certos de que em briga de marido e mulher não se mete
a colher.
Nunca praça lotada de gente, ninguém...nenhum
homem foi capaz de sequer perguntar do que se tratava.
Não resisto! É maior que eu! Levantei-me
da minha mesa, mesmo ao pedido contrário das minhas irmãs que alegaram em minha
defesa, que eu me tornaria alvo também daquele agressor. Mas posso ficar
calada, não consigo não me enxergar também ali.
Quando uma mulher é agredida,
todas nós somos. Porque é uma condição social, estrutural e se não me incomoda,
vai continuar assim.
Fui até lá e pediu para o tal
moço, deixá-la em paz. Claro que não fui atendida. Ela num ato de socorro
reforçou: -Não sou mais a mulher dele!
Mesmo que fosse, ele não tem
tal direito! Ninguém tem!
Insisti que ele a deixasse em
paz, e então avisei: - Se você não a deixar em paz, eu vou acionar a polícia!
Foi aí que me tornei o alvo.
Ele cresceu sobre mim e colocando o dedo na minha cara disse:
- O que você está dizendo aí?
Você não tem nada com isso! Chame a polícia para ver se eu não quebro a tua
cara!
(Agora erramos duas agredidas,
aos olhares calados de uma multidão acovardada de sua zona de conforto,
legitimada por um sistema que naturaliza tais atitudes).
Não tenho medo de homem
covarde. Não recuo a ameaças de quem usa da força para oprimir. Ele tem tanta certeza da impunidade que não se
intimida mesmo diante da multidão. Mas eu também não me intimido diante da
covardia generalizada. Me coloco naquele lugar, pois gostaria tanto de ter sido
salva, quando eu precisei. Que alguém tivesse tido por mim um minuto de
empatia, quando fui à vítima, tantas vezes. Mesmo que eu ainda continuasse no
ciclo da violência, mesmo que permanecesse junto ao meu agressor. Sei o quanto
é difícil sair desse ciclo, o quanto de nós é exigido. Mas não posso exercer
militância da boca para fora, se minha vida diz dessas marcas, se há sombras de
medo que me marcam até hoje.
Fui para casa, depois que conversei
com a mulher, prestei mais uma vez o meu apoio e sororidade, mesmo aos olhos
críticos de quem não entende as minhas razões. Orei a Deus por essa mulher,
agora é só o que eu posso fazer!
Orei também por todas outras
que não encontram meios de fugir, que à justiça não as alcança. Pedi a Deus
para aquele filho ter uma chance de crescer em paz, saudável e diferente do seu
pai.
Fiquei a refletir... em pleno
NATAL.
De que adianta toda minha
militância em redes sociais, se na vida eu me acovardar? Não é de likes e
lacres que a vida gira. Não quero reverência virtual. Precisamos de atitudes,
de defesa, de amor entre nós.
Ouvir esse discurso: “-Se
fosse sua mãe, sua filha, sua família você defenderia?” Não é mais suficiente! Não para mim. É por qualquer mulher. Todas
precisamos de defesa. É por cada uma de nós! De qualquer natureza... mulheres
apenas, mulheres.
Não me arrependo. Não tenho
medo. Não vou me acovardar. É incoerente com quem eu sou.
Sonho com um mundo onde uma
mulher possa vestir sua roupa nova e se sentar à mesa com sua família, sem ser
incomodado por um agressor, onde ela possa confraternizar, de verdade o
renascimento de Jesus se sentindo em paz. Se sentindo livre das amarras de uma
sociedade que não permite a ela o mínimo de segurança.
Ela é Jesus, tentando provar
ao mundo o seu amor. Esperando por justiça e humanidade, em plena noite de Natal.
É por ela e por todas que
deixo essa mensagem aqui. Reflitamos as nossas atitudes, as nossas falas e
militâncias, é preciso mais do que palavras, é preciso amar de verdade.
Izângela Feitosa
Texto tocante, real e notoriamente oportuno a nossa atual realidade.. Parabéns a escritora pelo talento e por se colocar no lugar do outro. Não só nesse texto, mas, em tudo que toca sua alma. Parabéns Izangela Feitosa. !
ResponderExcluirBelíssimo texto,bem real,diante do que vivemos atualmente,boa reflexão ! Parabéns Isangela Feitosa!
ResponderExcluir👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻
ResponderExcluir🙏🙏🙏
ResponderExcluirPela atitude sua, por isso te admiro muito, que pena que existência militância só na boca de muitos. Vc é uma guerreira Iza, merece minhas palmas 👏👏👏👏👏👏👏
ResponderExcluirParabéns pela sua atitude*
ResponderExcluirParabéns pela sua atitude, merece minhas palmas 👏👏👏👏, vc é uma guerreira, te admiro Iza!!
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