Vai ter que rebolar.
Anos atrás fui prestigiar o
festival de dança que acontece aqui em minha cidade já a algum tempo. Estavam lá
para serem celebrados algumas personalidades escolhidas pela significância cultural
dentro da proposta do evento. Como uma boa apreciadora da cultura, algumas dessas
personalidades me eram bem familiares.
É sabido que ao longo dos
tempos algumas coisas perpassem o caráter da existência e caiam no esquecimento
por razões, às vezes, até questionáveis. Mas minhas memorias são território de
muitas recordações bem relevantes ao caso, uma vez que desde de criança gosto e
me aventurava na proposta artística, até descobrir que minha afinidade mesmo
mora aqui na escrita.
Mas o evento é importante, a
concepção de celebrar junto as novas gerações os feitos passados são totalmente
louváveis, exceto por algumas ressalvas.
Havia nessa cidade um certo
rapaz bem jovem a época, que era tão naturalmente arte, que por onde andava
deixava sua marca. Ele viva um personagem o tempo todo. (Pelo menos era o que
eu, quando criança acreditava ser!) Seu nome, seu jeito, seus planos eram artísticos.
Ele foi a primeira pessoa na
minha vida que despertou a noção do ser andrógeno. Vestia-se com roupas
masculinas, tinha tendência homossexuais (embora eu não tivesse noção do que
fosse), e se travestia de Madona para exalar sua real essência artística. E ele
se garantia muito na performance. Não havia se quer um momento oportuno em que
ele deixasse de demonstrar o que ele amava fazer, nos comtemplava sempre com
sua veia artística, performática e visceral. Ele simplesmente arrasava
dançando, dublando, causando.
Vale ressaltar que falo de um
jovem rapaz de periferia, pobre, criado sem o pai, de uma cidade com pouco mais
de 20 mil habitantes, do interior do Ceará ao final dos anos 80; quando ninguém
sabia o que vinha a ser homofobia ,ele foi capaz de assumir a sua essência e transgrediu
todos os conceitos da época.
Era mágico assisti-lo de salto
alto, meias arrastão, cabelo blond, maquiagem. Tudo que uma menina como eu jamais
poderia usar, pois era coisa de moça falada, que não tinha mais honra. A gente
morria de vontade de poder ser também tão livre.
Ele interpretava, se
contorcia, fazia e acontecia à sua maneira. Sem medo do que haveria de enfrentar.
E ele enfrentou. Todo tipo de preconceito, exploração, abuso e violência. Se perdeu
nas drogas, se tornou alcoólatra e bandido. Perdeu seus sonhos de estrela e foi
preso por agressão e trafico. Viu o tempo passar com os olhos na dor de quem
perdeu tudo, menos a sua arte.
Infelizmente ele não dança
mais, não atua, não explora mais tudo que havia de bom na sua essência. Foi condenado
a uma sentença maior do que que a prisão, o esquecimento.
Sobrou tão pouco que outro dia
esbarrei com ele pela rua, estava em condicional. Quando me viu, teve medo de me
dirigir a palavra (qual seria a minha reação, diante daquele presidiário¿).
Seus olhos já não havia mais
brilho, um sorriso apático, com dentes amarelos, num rosto que nem de longe lembra
da beleza que um dia já teve. Um corpo cansado, maltratado, doente. Uma mente
confusa e um coração carente.
Eu o abracei! Senti naquele momento uma dor
gigante, e pensei como a vida pode tomar caminhos tortuosos. Como nossas
escolhas muitas vezes nos fazem tanto mal!
Era nítido sua vergonha ao ser
reconhecido; os olhos mareados de lagrimas. Foi um encontro bonito, e não sei
se pra ele tenha tido tanto significado, mas pra mim foi uma oração. Aqueles poucos
minutos frente a frente me trouxeram de volta ao chão. Orei por ele... Pedi perdão.
Saímos cada um de volta as
nossas vidas, mexidos, vividos, mudados.
Senti falta de uma homenagem a
ele no festival de dança. Senti falta dessa consideração. Talvez a arte tivesse
lhe salvado. Talvez fosse outra a intenção.
Só sei que nunca esquecerei
seus passos, aquele jeito único de ser, de quem já rebolava na vida pra
sobreviver, em todos os sentidos.
Izângela Feitosa
Mt lamentavel alguns rumos da vida. Todavia sempre olho pra situações como esta, sob o olhar de Thiago de Melo qdo diz: "o ser humano é resultado das escolhas que fez e das oportunidades que teve". Bem isso mesmo.
ResponderExcluir